quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Especial | O monólogo de Iago na conclusão do primeiro ato de Otelo (1603)

Otelo, Iago e Desdêmona

A abertura da terceira cena do primeiro ato de “Otelo” (1603), uma das peças mais famosas de William Shakespeare, demonstra que, até mesmo no meio jurídico, um meio onde deveria existir um mínimo de precisão, não há evidências. Depois de uma rubrica indicar a entrada do Duque local e dos senadores que o acompanham, aquele diz que “Não há nada de consistente que dê crédito / A essas notícias” (SHAKESPEARE, 2017, p. 147).

A fala que deixa em suspensão o conteúdo das notícias indicadas, diga-se de passagem, é pautada por uma construção comum em Shakespeare, comum em “Otelo”, que é uma fala de abertura de cena que insere o espectador no meio de uma conversa, e a partir do desenvolvimento dessa mesma conversa se entende o que está sendo dito, ótimo para conceder dinâmica e naturalidade à encenação. Deve-se dizer, além disso, que essa fala enfatizada é importante por marcar a imprecisão naquele meio político que envolve dois senadores e um Duque, figura esta fundamental para o Estado. A falta de precisão se encontra na informação sobre a quantidade de naus de uma frota turca que avança contra Chipre, pois um dos sujeitos diz que são cento e sete naus, outro diz que são duzentas, enquanto o Duque afirma que são cento e quarenta.

Diferente do que foi demonstrado na ação inaugural da cena, uma ação que envolve imprecisão na divulgação da notícia, Otelo acolheria uma presença mais do que precisa no momento em que é julgado segundo às acusações de Brabâncio, acusações ligadas à ideia de que Otelo enfeitiçou, com magia negra, a sua nobre e casta filha Desdêmona. Ao longo de seu monólogo, que cativaria até mesmo a filha do Duque, como ele mesmo diz, “Uma história assim ganharia até minha filha” (SHAKESPEARE, 2017, p. 153), uma espécie de alívio cômico àquele momento, Otelo é extremamente frio e inteligente, sabe conquistar os seus julgadores e conquista, até mesmo, o espectador.

Na sua longa fala, é necessário destacar, o personagem-título, mesmo sendo insultado de feiticeiro do inferno (SHAKESPEARE, 2017, p. 150), mantém a calma e abusa de figuras de linguagem que concedem elegâncias máximas ao seu discurso. Ele enumera, em primeiro lugar, algumas das suas funestas venturas que conquistaram Desdêmona, conquista feita, aliás, pelo seu ato de narrar, ou seja, os feitiços de Otelo, na verdade, são os relatos, o feitiço é a literatura, a magia é a sua vivência. A enumeração citada, aliás, é feita com base em elementos anafóricos marcados pela preposição “de”, o que traz uma sensação de infinidade, de grandeza, sobre os inúmeros eventos que participou:

De eventos oscilantes no campo e no mar, / De fugas por um fio por brechas despencando, / De como me prendeu o insolente inimigo / E vendeu-me como escravo; de meu resgate / De minha fina na jornada atribulada / E de cavernas vastas e desertos vagos, / De agras penhas, pedras, cumes que arranham os céus, / Disso tudo eu falei... (SHAKESPEARE, 2017, p. 152).

Além de tais enumerações importantes para fazer brilhar os olhos do júri e do espectador, Otelo abusaria, ainda, de hipérboles, artifício potente na conquista do seu público por conta de toda a beleza narrativa criada por ele, quando diz que Desdêmona, após ouvir aquelas aventuras perigosíssimas que fariam inveja até mesmo em roteiristas hollywoodianos, “brindou com mil suspiros” (SHAKESPEARE, 2017, p. 152) os seus tormentos. O Mouro enfeitaria ainda mais a sua longa e solitária fala ao utilizar um singelo advérbio de intensidade fundamental para que todos fossem convencidos de que aquelas histórias comoveram a filha de Brabâncio, diz que a nobre moça ficou com pena, mas muita pena dele, e esse “muita” demonstra que o sentimento da mulher foi aflorado.

Enquanto isso, mais próximo das falas desengonçadas do Duque e dos dois senadores na abertura da cena, Brabâncio se mostra um verdadeiro descontrolado. O pai da bela Desdêmona, depois de ver que o Duque entendeu o lado afetivo do casal e depois de ter ouvido da própria filha que ela possui afetos por Otelo, mostra-se desequilibrado, desnorteado, pois, em alguns poucos versos pronunciados por ele mesmo, fala, em um curto intervalo de tempo, com inúmeras figuras, fala com Deus e, na linha seguinte, fala consigo mesmo, falando com Otelo no verso posterior e, por fim, chega a referir a sua fala à Desdêmona e ao Duque:

Deus a tenha, é o que basta. / Peço à Vossa Graça, volte às coisas do Estado. / Se eu ao menos tivesse adotado, nunca gerado / Uma criança! Vem, Mouro, aqui te entrego / De todo o coração o que eu te negaria / De todo o coração, se já não a tivesses. / E tu, meu tesouro, por tua causa apenas, / Fico contente de não ter tido outros filhos, / Pois tua fuga me ensinaria a ser tirano / E a acorrentá-los. Isso é tudo, meu senhor (SHAKESPEARE, 2017, p. 153).

Entre equilíbrios e desequilíbrios, entre precisões e imprecisões, aparece, na cena, um dos personagens-chave da trama, Iago. A sua aparição na cena acontece quando conversa com Rodrigo, uma espécie de robô de Iago, uma espécie de robô pela razão de parecer ser programado pelo próprio Iago, faz o que este pede, exatamente como pede, durante boa parte da encenação, e muito disso passa, primeiro, por Iago ser um exímio manipulador e, segundo, por Rodrigo ser um indivíduo frágil, melodramático, romântico, querendo a morte como alívio por causa de um amor não concretizado. Como o “Efeito Kuleshov” em terreno cinematográfico, em que a soma de dois quadros cria uma terceira imagem (A + B = C), a soma entre a arquitetura de Iago e a fragilidade de Rodrigo resulta em um terceiro aspecto, o desencadeamento de certas ações capitais na trama, como a briga forjada, por Iago, entre Rodrigo e Miguel Cássio.

Calculista, porém esquentado, equilibrado, mas também desequilibrado, preciso e impreciso, Iago é um personagem rodeado de contradições, contradições que o levam do céu ao inferno em diversos momentos da trama, do gozo de ver um plano seu se concretizar à sua condenação final. Muito como se configura boa parte da cena debatida nesta análise, uma cena feita de momentos em que se vê o equilíbrio e o desequilíbrio, a precisão e a imprecisão, o monólogo que conclui o primeiro ato da peça é pautado dessa forma, entre oposições, como os traços contrários de Iago, um monólogo importante para o andamento da narrativa.

Depois de manipular Rodrigo quanto ao envolvimento de dinheiro, o personagem enganado, indicado pela rubrica, sai do palco e sobra, para um monólogo, Iago. Nota-se que, logo depois da saída do seu animal adestrado, o antagonista da peça carrega palavras fortes contra o sujeito que havia acabado de manipular, diz que ele é um trouxa, um panaca, e o mais interessante de tudo é que, durante esse momento do monólogo, um momento mais debochado, mais jocoso, Iago, sem nenhum personagem próximo de si, se refere diretamente ao espectador, quebrando a quarta parede, muito moderno para a época, ao dizer: “Viram como se usa um trouxa pra encher a trouxa?” (SHAKESPEARE, 2017, p. 159).

Esse primeiro momento, mais jocoso, está relacionado a uma espécie de síntese sobre o que foi feito, a ação antecessora é amarrada ao seu monólogo, e ela é importante, também, para que, de modo súbito, o câmbio na sua forma de falar, que sai do irônico ao raivoso, demonstre, psicologicamente, o seu desequilíbrio quanto àquilo que o acerca. Ao ser revelado ao público os ciúmes que o consomem, acreditando que Otelo teve relações amorosas com a sua companheira, Iago desfere frases raivosas contra o Mouro, não falas direcionadas ao personagem-título, afinal, Iago está sozinho no palco, mas pensa em voz alta, diz que o detesta, mostra-se, realmente, desequilibrado. Nesse segundo bloco de versos de tom raivoso, a imprecisão também é encontrada, seguindo bastante a falta de certeza da informação na abertura da cena com o Duque e os senadores, é encontrada no momento em que o antagonista diz não saber se é verdade ou não a história da traição, mas que levará como uma verdade, ou seja, transforma aquela dúvida em uma certeza, em uma falsa precisão.

Em um terceiro momento do monólogo, ainda pensando em voz alta, Iago revela os seus planejamentos sobre a forma como derrubará Otelo, por meio de Miguel Cássio, fiel companheiro do Mouro. Durante a sua fala, na verdade, os seus pensamentos não são revelados como planos já prontos, esquematizados, pois eles vão sendo, aos poucos, construídos naquele momento do discurso, com o antagonista se indagando, “Mas como? Como?” (SHAKESPEARE, 2017, p. 159), e parando para raciocinar em algumas ocasiões, “Muito bem, vejamos” (SHAKESPEARE, 2017, p. 159), o que resulta, pouco a pouco, em uma avalanche de ideias que se conectam de maneira perfeita, ideias macabras, de colocar Cássio como um sujeito íntimo demais da esposa de Otelo, criando suspeitas por parte do general, sendo a suspeita, a dúvida, o grande motor da peça.

Nos dois últimos versos, depois de tanto pensar e conectar as peças de um quebra-cabeça que monta, o que demonstra precisão no momento de pensar e equilíbrio na sua busca por um objetivo, Iago conclui o ato ao dizer: “E é isso! Está engendrado! A noite e o inferno fundo / Trarão essa nascença monstra à luz do mundo” (SHAKESPEARE, 2017, p. 160). Interessante, a sua fala é dona de algumas exclamações, cristaliza a sua empolgação no momento em que monta esse quebra-cabeça, sendo a empolgação mais um tom no monólogo depois da ironia, da raiva e da frieza no momento de planejar, e isso mostra o quão desequilibrado ele está quanto à situação, ao mesmo tempo em que mostra equilíbrio para esquematizar um plano impulsionado pelo ciúme.

Diante de tal monólogo, entre o equilíbrio e o desequilíbrio, mostrando precisão e imprecisão, expectativas são criadas para as cenas sucessoras, expectativas pautadas no último verso da fala de Iago, de que acontecerá, por conta dos atos planejados, uma nascença monstra, o que de fato acontece, quando um banho de sangue, seguindo o patético de Aristóteles (1964), seria derramado no clímax da obra. O monólogo analisado detalhadamente neste texto é rico, complexo e fundamental para o que se segue, pois é nele que são revelados os planos de Iago e, principalmente, o seu impulso raivoso, que é o monstro de olhos verdes, o ciúme, e de tão importante que é o monólogo, os seus dois últimos versos, destacados no parágrafo antecessor, são compostos por rimas, algo não tão comum em Shakespeare, mas que, quando são utilizadas, geralmente marcam uma fala de grande importância.

Referências:

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difel, 1964.

SHAKESPEARE, William. Otelo. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Penguin, 2017.

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