terça-feira, 22 de março de 2022

Análise | A Máscara da Morte Vermelha (1842)

A Máscara da Morte Vermelha


“A Máscara da Morte Vermelha” (1842) pode não ser um dos contos mais sublimes de Edgar Allan Poe, nem mesmo um dos seus mais conhecidos, mas é decerto grandioso, figura a lista quase infinita de contos seus que são absolutamente engenhosos. Já no primeiro parágrafo, alguns traços brilhantes podem ser encontrados no texto, quando uma poética ambientação, de que uma peste assola uma região, derrama sangue já nas primeiras linhas:

A “Morte Vermelha” devastava havia muito tempo o país. Nenhuma pestilência jamais fora tão fatal, ou tão hedionda. O sangue era seu Avatar e seu sinete – a vermelhidão e o horror do sangue. Havia dores agudas, e tonturas súbitas, e depois profuso sangramento pelos poros, com o óbito final. As manchas escarlates no corpo e especialmente no rosto da vítima eram o banimento pestilente que alijava a pessoa da ajuda e solidariedade de seus semelhantes. E o processo todo de acometimento, progresso e término da doença consistia de meia hora (POE, 2012, p. 143, grifos meus).

A ambientação, como é possível visualizar, é pautada por uma série de elementos sinistros que dão, de cara, o cartão de visitas macabro. Vemos, aqui, uma série de vocábulos relacionados ao vermelho, indicado no título e no nome popular da peste, localizado logo no primeiro período, a “Morte Vermelha”. Não apenas o adjetivo “escarlate”, mais à frente, mas substantivos como “vermelhidão”, “sangue” (duas vezes veiculado) e “sangramento” complementam o parágrafo de tom avermelhado, complementado, diga-se de passagem, por sequências torturantes que explicam o modus operandi da doença fatal. 

Logo depois dessa ambientação vermelha, temos uma importante conjunção coordenativa adversativa que solidifica uma virada importante na trama, quando o príncipe Prospero, o impulsionador das engrenagens do enredo, 

convocou ante sua presença mil amigos sãos e despreocupados dentre os cavaleiros e damas de sua corte, e com eles retirou para a profunda reclusão de uma de suas abadias fortificadas. Tratava-se de uma estrutura extensa e magnífica, criação do próprio gosto excêntrico, mas augusto, do príncipe. Uma muralha forte e elevada a circundava. Essa muralha tinha portões de ferro. Os cortesãos, tendo entrado, trouxeram forjas e maciços martelos e soldaram as trancas (POE, 2012, p. 143). 

Em meio a uma epidemia sangrenta, é notável o modo como o influente príncipe e uma multidão se tranca em um castelo, separando-os do restante do mundo: “O príncipe providenciara todos os aparatos para a diversão. Havia bufões, havia improvisadores, havia dançarinos, havia músicos, havia a Beleza, havia vinho. Tudo isso, mais a segurança, do lado de dentro. Lá fora a ‘Morte Vermelha’” (POE, 2012, p. 144). A antítese formada pela dupla dentro-fora é simplesmente simbólica, e é notável como a palavra “segurança” aparece bem ao lado do advérbio de lugar que evidencia o isolamento daquelas pessoas eufóricas e animadas, convidadas do excêntrico príncipe: “Foi próximo ao final do quinto ou sexto mês de sua reclusão, enquanto a pestilência assolava com o auge da fúria do outro lado, que o príncipe Prospero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras da magnificência mais extraordinária” (POE, 2012, p. 144). 

Após o discurso de ambientação tomar conta dos primeiros blocos, um longuíssimo parágrafo de descrição, de mais de uma página de extensão, dominaria por algum tempo a enunciação para desenhar o lado interior do castelo, coloridíssimo nos seus pavilhões, onde essa grande festa aconteceria. Em meio a salões coloridos predominantemente pautados por cores como o azul, como o verde ou como o branco, para citar apenas três casos, destaca-se o aposento oeste, também chamado de salão negro, onde

o efeito da luz do fogo que vertia sobre os reposteiros escuros através das vidraças tintas de sangue era macabro ao extremo e produzia uma expressão tão selvagem nos semblantes dos que ali entravam que poucos dentre os convidados eram suficientemente ousados para até mesmo pisar ali dentro (POE, 2012, p. 145). 

O destaque concedido pela narrativa a esse aposento é interessantíssimo, alimenta a atmosfera de medo (vista antes no “parágrafo vermelho”) momentaneamente esquecida, como se estivesse pontuando o castelo de elementos macabros, os quais envolveriam o local nas páginas seguintes. Ainda sobre esse fragmento, observamos um local obscuro da mansão, muito potente fantasmagoricamente falando, algo que vai ao encontro, por exemplo, do relógio que seria destacado no parágrafo seguinte, localizado justamente nesse cômodo da mansão: 

Havia nesse aposento, ainda, encostado na parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu ébano oscilava de um lado para o outro com um ruído surdo, pesado, monótono; e quando o ponteiro dos minutos completava seu percurso diante do mostrador, e soava a hora, dos brônzeos pulmões do relógio brotava um som distinto, alto, profundo, extraordinariamente musical, mas vibrando com nota e ênfase tão peculiares que, ao lapso de cada hora, os músicos da orquestra eram obrigados a fazer uma pausa momentânea em sua apresentação, para escutar o som; e desse modo os valsistas forçosamente interrompiam suas evoluções; e um breve desconcerto tomava conta de toda a alegre comitiva; e, enquanto o carrilhão do relógio ainda soava, observava-se que os mais agitados iam ficando pálidos, e os mais idosos e entorpecidos passavam a mão na testa como que em confuso devaneio ou meditação. Mas quando os ecos cessavam por completo, risadas despreocupadas percorriam na mesma hora a multidão; os músicos se entreolhavam e sorriam como que de seu próprio nervosismo e tolice, e prometiam uns aos outros, sussurrando, que os próximos repiques do relógio não produziriam neles semelhante emoção; e então, transcorrido o intervalo de sessenta minutos (que compreende três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), seguia-se outro repique do relógio, e então o mesmo desconcerto, tremores e meditação de antes (POE, 2012, p. 145). 

Naquela “festa alegre e magnífica” (POE, 2012, p. 145), percebemos ao menos dois aspectos relevantes que reforçam a tonalidade sinistra ao lado da Morte Vermelha. Tanto o aposento quanto o relógio evocam efeitos macabros, o primeiro mais pelo seu mistério, o segundo mais pelo seu semblante incômodo, é um relógio perturbador situado em uma região medonha do castelo. Nesse extenso fragmento há pouco citado, que é o parágrafo inteiro no qual é apresentado o relógio, é notável, para além de todas as questões que estragam o prazer dos convidados da festa, uma oração adjetiva restritiva que enfatiza o “Tempo que voa” das horas daquelas pessoas, como se o narrador realçasse, podemos interpretar assim, uma espécie de contagem regressiva para aqueles sujeitos, que parecem temer as batidas daquele relógio. 

Os demais aposentos, com exceção, claro, do salão negro, “estavam densamente abarrotados, e neles bate febrilmente o coração da vida” (POE, 2012, p. 146). O plano geral é o enquadramento predominante do narrador neste conto, ele não desenvolve, por exemplo, a trajetória ou as ações de alguns personagens, mas as enxerga e as descreve diante de um plano panorâmico, digamos assim. A aproximação das lentes do narrador sobre alguma figura específica ocorre quando, na multidão, “se deram conta da presença de uma figura mascarada que não chamara a atenção de um único indivíduo antes” (POE, 2012, p. 147, grifos meus). A máscara dessa figura constrói, por natureza, certa obscuridade nos entornos desse personagem misterioso. A partir do parágrafo seguinte, porém, sofremos, como os convidados da festa, um grande impacto aterrorizante ao ser revelada a identidade desse ser, pois “a figura em questão superava em herodianismo o próprio Herodes” (POE, 2012, p. 147), este uma figura tirânica, que mandou assassinar os meninos de Belém, incluindo Jesus, em uma das passagens bíblicas. 

O grau de maldade é constatado nessa comparação com Herodes, mas a sua descrição visual e comportamental complementa os seus altos graus de horror: 

A comitiva toda, de fato, parecia agora sentir profundamente que no traje e na conduta do estranho não existiam nem humor, nem civilidade. A figura era alta e descarnada, e amortalhada da cabeça aos pés nas roupagens do túmulo. A máscara que ocultava as feições era feita de modo tão próximo a se assemelhar ao semblante de um cadáver enrijecido que um escrutínio mais detido teria tido dificuldade em detectar o embuste. E contudo tudo isso podia ter sido suportado, quando não aprovado, pelos burlescos foliões em torno. Mas o fantasiado chegara ao extremo de assumir a caracterização da Morte Vermelha. Sua vestimenta estava salpicada de sangue – e sua fronte, com todas as feições do rosto, aspergida com o horror escarlate (POE, 2012, p. 147). 

Depois dessa revelação assustadora, o que ocorre, nos momentos finais, é um verdadeiro banho de sangue, conduzido por essa criatura estranha, marcada por adjetivos como “descarnada” e “amortalhada”. Esse banho de sangue final executa, no conto, um movimento cíclico, basta que nos lembremos do começo, e também um tom trágico, de uma tragédia previsível e inevitável devido às ações irresponsáveis daqueles personagens em meio à epidemia: “E, um a um, tombaram os festivos convivas nos salões orvalhados de sangue de sua festa, e morreram um a um na posição desespero em que tombaram” (POE, 2012, p. 150). “A Máscara da Morte Vermelha” é um dos contos mais sinistros de Edgar Allan Poe, é responsável por um nível de prazer estético incalculável, ainda que esteja um pouco afastado das verdadeiras obras-primas do autor, como “William Wilson” (1839) e “O Poço e o Pêndulo” (1842), por exemplo. Se levarmos em conta o contexto dos últimos anos da pandemia do coronavírus, as coisas se tornam ainda mais apreensivas durante a leitura desse texto, e muito disso se dá pelo seu grau de semelhança com os acontecimentos recentes de indivíduos igualmente irresponsáveis. 

Referências

POE, Edgar Allan. A Máscara da Morte Vermelha. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 143-150. 

POE, Edgar Allan. O Poço e o Pêndulo. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 49-66. 

POE, Edgar Allan. William Wilson. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 25-47.

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