segunda-feira, 25 de abril de 2022

Análise | O Gato Preto (1843)

O Gato Preto - Poe

Como geralmente ocorre nos contos em geral de Edgar Allan Poe, os parágrafos de abertura dos seus textos são geralmente pautados por um conteúdo que, de cara, anuncia o horror a ser evidenciado no restante da trama. Em “O Gato Preto” (1843), observamos um campo semântico inclinado ao estresse ditar os primeiros passos da narrativa, em que o narrador-personagem diz que os seus “próprios sentidos rejeitam o que testemunharam” (POE, 2012, p. 81); complementa ainda: “Por suas consequências, esses eventos me aterrorizaram – torturaram – destruíram” (POE, 2012, p. 81).

Logo no parágrafo seguinte, porém, como é também de costume nas obras do autor estadunidense, o discurso é mais acalmado diante de um campo semântico mais brando, quando ainda estamos nos ambientando na história. Nesse caso, sem dar nenhuma informação sobre o tema no primeiro parágrafo do texto, o segundo começa com o narrador mergulhando na sua infância, nas suas lembranças mais doces: “Tinha particular afeição por animais e fui mimado por meus pais com uma grande variedade de bichos de estimação” (POE, 2012, p. 81). Dando prosseguimento à sua trajetória de vida, o narrador-personagem diz: “Casei-me cedo, e tive a felicidade de encontrar em minha esposa uma disposição não incompatível com a minha própria. Observando meu apreço pelos animais domésticos, ela não perdia a oportunidade de obter os tipos mais agradáveis” (POE, 2012, p. 82). Nesses instantes, é interessante notar a disposição de palavras como “felicidade” e “apreço”, palavras agradáveis que estão direcionadas, sobretudo, aos animais de estimação. Complementa o narrador nesse mesmo segmento: “Tivemos pássaros, peixes dourados, um ótimo cão, coelhos, um macaquinho e um gato” (POE, 2012, p. 82). 

Nota-se que, no fragmento acima evidenciado, a expressão “um gato” é destacada em itálico pelo próprio autor, um destaque importante por já frisar a importância desse elemento para o restante da narrativa. Pluto, o gato preto de estimação do narrador-personagem e da sua esposa, seria alçado à condição de principal engrenagem do texto, inicialmente caracterizado como um “animal notavelmente grande e belo, todo negro e esperto” (POE, 2012, p. 82). Com o passar das linhas, no entanto, esse lindo bichano passaria a ser um alvo de repulsa por parte do personagem principal: 

Nossa amizade durou, desse modo, por vários anos, durante os quais meu temperamento geral e caráter – por obra do Demônio da Intemperança – experimentaram (coro em confessar) uma radical alteração para pior. Tornei-me, a cada dia, mais taciturno, mais irritável, mais sem consideração pelos sentimentos alheios. Permitia-me o uso de uma linguagem destemperada com minha mulher. Por fim, cheguei até a ameaçá-la de violência física. Meus bichos, é claro, também sofreram com minha mudança de disposição. Eu não só os negligenciava, como também os maltratava (POE, 2012, p. 82). 

O jogo de enunciação do conto é deveras interessantíssimo, dado que, após uma trégua na adjetivação mais bruta, voltamos a ver vocábulos mais negativos nos seus significados, como “taciturno”, “irritável” e “destemperada”, além de termos como “violência física”, esta última relacionada à esposa do protagonista. Se Todorov (2006), em “A Gramática da Narrativa”, diz que os adjetivos são o termômetro de um texto literário, a oscilação entre elementos caracterizadores de cunho positivo e de cunho negativo no conto em análise deixa isso bastante claro. A grande questão de “O Gato Preto”, porém, é que desde que o narrador-personagem revela o seu problema com o álcool, no mesmo longo parágrafo parcialmente citado acima, há uma focalização maior sobre cenas violentas, o que consequentemente modifica o tipo de discurso a ser utilizado, e sobre cenas mais sinistras, estilo que nunca deixa de pintar nas obras de Poe. 

Após anunciar que os seus efeitos agressivos também passaram a atingir Pluto, vemos, de imediato, tal tipo de cena: 

Certa noite, voltando para casa, muito embriagado, de uma de minhas tavernas pela cidade, julguei que o gato evitava minha presença. Agarrei-o; nisso, em seu medo de minha violência, ele me infligiu um leve ferimento na mão com os dentes. A fúria de um demônio apossou-se instantaneamente de mim. Eu não mais me reconhecia. Minha alma original pareceu, na mesma hora, levantar voo do meu corpo; e uma malevolência mais do que diabólica, inflamada a gim, convulsionou cada fibra de meu corpo. Tirei do bolso do colete um pequeno canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e deliberadamente arranquei um de seus olhos da órbita! Coro, enrubesço, estremeço conforme descrevo a abominável atrocidade (POE, 2012, p. 83). 

Nesse parágrafo, além da climatização relacionada à noite e à embriaguez do instável protagonista, a “abominável atrocidade” é narrada de forma surpreendentemente crua, atingindo em cheio o leitor, já que o animal, assustado, é gravemente ferido, mutilado, pelo seu dono. Ainda que não haja muito detalhamento sobre o estado do animal pós-mutilação, a curta sequência de verbos (“tirei”, “abri-o”, “agarrei” e “arranquei”), já no final do segmento transcrito, causa um enorme nível de tensão a cada movimento realizado pelo personagem, tomado por uma “fúria de um demônio”, e logo depois do ato, claro, é criada uma repulsa sobre esse sujeito que, aos poucos, se transforma em um monstro. Diante do que foi exposto, vemos, portanto, uma mudança na tonalidade do conto, cada vez mais agressivo. 

Um dos trechos que mais se destacam depois desse é um no qual o gato está mais uma vez nos holofotes, causando, ao mesmo tempo, terror e compaixão: “A órbita do olho perdido apresentava, é verdade, uma aparência assustadora, mas ele não parecia sentir mais dor alguma. Andava pela casa como de costume, mas, como era de esperar, fugindo aterrorizado à minha aproximação” (POE, 2012, p. 83, grifos meus). Nesse caso, destacam-se, outrossim, os adjetivos, que marcam muito bem tais elementos enfatizados por mim, “assustadora” gera o terror, ao passo que “aterrorizado” gera a compaixão pelo bichano. 

Em plena luz do dia, logo depois, o narrador relata que enforcou o gato, momento que, diga-se de passagem, choca pela repulsa aumentada nos entornos do protagonista, mas que provoca uma virada interessantíssima no interior da narrativa: “Certa manhã, a sangue frio, passei um laço em torno do pescoço e o enforquei no galho de uma árvore” (POE, 2012, p. 84). Essa virada é responsável por uma espécie de cadeia de eventos que assombra o personagem principal. Em primeiro lugar, um incêndio esquisito atinge a sua casa, e sobre a única parede que permaneceu de pé, ele viu “como que gravado em bas relief sobre a superfície branca, a figura de um gigantesco gato. A imagem se estampava com uma precisão realmente maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço do animal” (POE, 2012, p. 85). 

Os dois eventos são depois explicados, de modo racional por parte do narrador, que chega a nos convencer devido ao grau de detalhamento dado e à convicção na sua fala. A questão, contudo, é que a aparição da imagem do gato impactou o personagem principal, mesmo que apoiado na razão:

Embora desse modo procurasse eu prontamente prestar contas a minha razão, quando não, na medida do possível, a minha consciência, pelo fato alarmante que acabo de descrever, isso tampouco deixou de causar uma profunda impressão em minha imaginação. Por meses não consegui me libertar da imagem fantasmagórica do gato (POE, 2012, p. 85). 

A aparição de um novo gato preto, “tão grande quanto Pluto, e muito parecido com ele em todos os aspectos, exceto um” (POE, 2012, p. 85), balançaria ainda mais as coisas, já que uma nova relação de conflito seria estabelecida para o narrador-personagem, pois maltrataria o animal, como havia feito com o outro: “De minha parte não demorou muito para que a repugnância começasse a crescer dentro de mim” (POE, 2012, p. 86). O curioso é que esse mesmo gato, que coincidentemente “também fora privado de um olho” (POE, 2012, p. 86), passou a ter mais apreço pelo personagem principal, enquanto este passou a ter mais pavor: 

Esse pavor não era exatamente o pavor de um mal físico – e contudo me faltariam palavras para defini-lo de outro modo. Tenho quase vergonha de confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso, tenho quase vergonha de confessar – que o terror e o horror que esse animal me infundia haviam sido aumentados por uma das mais simples quimeras que seria possível conceber (POE, 2012, p. 87). 

O ápice seria desencadeado na seguinte revelação, ligada a uma mancha branca encontrada no novo gato: 

O leitor haverá de recordar da mancha de pelo branco, da qual falei, e que constituía a única diferença visível entre o estranho animal e o outro que eu matara. O leitor haverá de recordar que essa mancha, embora grande, havia se mostrado orginalmente muito indefinida; porém, por longo tempo minha Razão lutou por rejeitar como fruto da imaginação –, assumira, finalmente, uma rigorosa precisão de contornos. Era agora a representação de um objeto que tremo em nomear – e por isso, acima de tudo, nutria ódio, e pavor, e teria me livrado do monstro caso ousasse – era agora, afirmo, a imagem de uma coisa hedionda – de uma coisa macabra – do PATÍBULO! – ah, pesaroso e terrível maquinismo de Horror e de Crime – de Agonia e de Morte! (POE, 2012, p. 87). 

A possível coincidência, ou a visão distorcida do narrador-personagem, o levam a acreditar que aquela criatura, a qual chama de “monstro” em diversas ocasiões, como vimos inclusive no fragmento transcrito acima, foi-lhe engendrada, o que acaba por desequilibrá-lo completamente, desequilibrá-lo no seu discurso e também no seu cotidiano, quando passa a ter “pesadelos de indivisível medo” (POE, 2012, p. 87) e a tentar matar aquele novo bichano: 

Erguendo um machado, e esquecendo, em minha ira, o pavor infantil que até então detivera minha mão, dirigi um golpe contra o animal que, sem dúvida, teria se provado instantaneamente fatal caso houvesse descido como eu desejara. Mas o golpe foi interrompido pela mão de minha esposa. Instigado por essa interferência numa fúria mais do que demoníaca, libertei meu braço e enterrei o machado em seu cérebro. Ela tombou morta imediatamente, sem um gemido (POE, 2012, p. 88). 

O discurso é nitidamente violento, e o campo semântico cria uma base interessante para o seu impulso, havendo, logo em seguida, uma ocultação de cadáver por parte do narrador-personagem, que chega a evidenciar, através de uma enunciação expositiva, o passo a passo que executou para, perfeitamente, esconder o cadáver da mulher atrás de uma sólida parede da sua casa. Surpreendentemente, contudo, lembrando que a surpresa é um dos principais elementos das obras de Poe, o gato desmascara o confiante e mais tranquilo protagonista com os seus miados, ou melhor, com o seu uivo, como diz o próprio personagem principal, o que desencadeia o ápice do horror no conto: 

O cadáver, já grandemente decomposto e coberto de crostas de sangue, surgiu ereto ante os olhos dos presentes. Em sua cabeça, com a boca vermelha escancarada e um olho solitário de fogo, estava a hedionda criatura cuja astúcia me levara ao assassinato, e cuja voz delatora me condenara à corda do carrasco. Eu emparedara o monstro dentro da tumba! (POE, 2012, p. 92). 

A gradual transformação do narrador-personagem em um monstro, a presença fantasmagórica do gato, o jogo constante de câmbios estilísticos das enunciações, além de outros muitos fatores, pendem a composição de “O Gato Preto”, decerto um dos textos mais conhecidos de Edgar Allan Poe, a uma das suas mais brilhantes criações.

Referências

POE, Edgar Allan. O Gato Preto. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 81-92. 

TODOROV, Tzvetan. A Gramática da Narrativa. In: TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 135-146.

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