quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Análise | Berenice (1835)

Berenice - Edgar Allan Poe

“Berenice” (1835) pode não ser um dos contos mais famosos do mestre Edgar Allan Poe, mas é decerto um dos textos mais impressionantes do autor estadunidense em termos de iniciação, já que a obra é inaugurada com base em afirmações fortes: “A miséria é múltipla. A desgraça do mundo é multiforme” (POE, 2012, p. 191). O narrador, de imediato, agride o leitor, que já está pendido, já nas primeiras linhas, a uma atmosfera negativa e violenta.

Ainda no primeiro parágrafo, o protagonista, e narrador da história, carimba um discurso filosófico, e forte em termos de tonalidade, através de alguns questionamentos debruçados em antíteses: 

Como pode ser que da beleza derivei um tipo de desencanto? – da aliança da paz um símile de tristeza? Mas assim como, em ética, o mal é consequência do bem, igualmente, com efeito, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança de uma felicidade passada é angústia do hoje, ou as agonias existentes têm sua origem nos êxtases que poderiam ter existido (POE, 2012, p. 191).

Nesse pedaço, é notável a maneira como as oposições relaciona aspectos positivos a aspectos negativos, sedimentando uma tensão que, com o passar das páginas, seria mais bem entendida pelo leitor, como veremos mais à frente nesta brevíssima análise. Em seguida, quem ganha espaços no mosaico enunciativo de Poe é um discurso mais atrelado à apresentação do próprio narrador-personagem, um indivíduo rico chamado Egeu, e um mergulho nas suas memórias, as quais pouco a pouco começam a afunilar o texto para o seu principal conflito: 

Há, entretanto, uma lembrança de formas aéreas – de olhos espirituais e expressivos – de sons, musicais porém tristes – uma lembrança que não se deixa elidir; uma recordação qual uma sombra, vaga, variável, indefinida, inconstante; e, qual uma sombra, também na impossibilidade de dela me livrar enquanto o sol de minha razão continuar a existir (POE, 2012, p. 102). 

Nota-se, nesse trecho, a maneira como o narrador-personagem caracteriza a situação, comparando-a a uma sombra, chamando-a de “vaga” e “indefinida”. A caracterização é precisa naquilo que Poe propõe nas introduções dos seus contos: ele esfumaça o que quer dizer, mas, justamente diante das adjetivações e das comparações, agarra da forma mais violenta a atenção do espectador, que cria expectativas para saber o que é essa lembrança “eu não se deixa elidir”, essa recordação “qual uma sombra”. Esse recurso ganharia forças nas narrativas de medo com o passar do tempo, basta que nos lembremos de A Outra Volta do Parafuso (1898), que promete contar a história mais tenebrosa de todas, ou mais tardiamente, no cinema, em Frankenstein (1931), há um apresentador que se dirige ao espectador e diz para ele sair da sala antes que aquela história sinistra seja iniciada. Poe pode não ter sido um inventor desse recurso, e ele não se apoia nessa estratégia de maneira mais escancarada, como na fita de James Whale, mas parece que o consolidou no campo da ficção de terror. 

Quando Egeu mergulha de vez no passado, passa contar um pouco da sua relação com a personagem-título, até então oculta no texto: “Berenice e eu erámos primos e crescemos juntos na mansão de meus pais” (POE, 2012, p. 192). Se no primeiro parágrafo as antíteses dominavam a enunciação do texto, a presença desse elemento não é diferente quando o narrador fala de si e da sua prima: 

E contudo foi de modo diferente que crescemos – eu, debilitado de saúde e afundado na melancolia – ela, ágil, graciosa, transbordando de energia – a ela as deambulações pela encosta da colina – a mim os estudos do claustro – eu vivendo dentro de meu próprio coração, e devotado de corpo e alma à mais dolorosa meditação – ela vagando tranquilamente pela vida sem pensamento algum para as sombras em seu caminho, ou para o voo silencioso das horas com suas asas de corvo (POE, 2012, p. 192). 

Após essa saudosa exposição do personagem, em que chegamos a notar, logo na sequência, a presença de interjeições que representam a saudade de Egeu daqueles tem-pos , ele começa a nos contar sobre a doença que atingiu Berenice e sobre o distúrbio que o assolou a partir de determinada altura da sua vida, sendo a partir disso o momento em que o drama do conto passa a ganha robustez. Sobre o primeiro caso, ele diz: 

A doença – uma doença fatal – se abateu como um simum sobre seu corpo, e, diante de meus próprios olhos, o espírito da mudança desceu sobre ela, permeando sua mente, seus hábitos e seu caráter, e, da maneira mais sútil e terrível, perturbando até mesmo a identidade de sua pessoa (POE, 2012, p. 193). 

Em relação ao segundo caso, sobre a sua própria doença, o narrador-personagem diz que 

[nesse] meio tempo minha própria enfermidade [...] rapidamente tomou conta de minha pessoa, e assumiu um caráter monomaníaco de uma forma nova e extraordinária - ganhando vigor a cada hora, a cada momento – até finalmente obter sobre mim a mais incompreensível ascendência. Essa monomania, se assim posso designá-la, consistia de uma irritabilidade mórbida dessas propriedades da mente que a ciência metafísica denomina atentivas (POE, 2012, p. 193). 

O conto, a partir de então, passa a se equilibrar nesses dois conflitos: na doença de Berenice e na monomania do narrador-personagem, esta uma base para desencadear os efeitos mais brutais daquela. Em certa altura, o discurso expositivo, quase que soando como uma espécie de relatório, traz exemplos, ilustrações e até mesmo comparações para o leitor entender de forma razoável esse distúrbio raro que perturba o protagonista: 

A excessiva, grave e mórbida atenção assim despertada pelos objetos por sua própria natureza triviais não deve ser confundida em caráter com a propensão a ruminações comum em toda a humanidade, e às quais mais particularmente se abandonam pessoas de imaginação ardente. Não era sequer, como se poderia de início supor, uma condução extrema, ou um exagero de tal propensão, mas, primordial e essencialmente, distinta e diferente. No exemplo em questão, o sonhador ou entusiasta, estando interessado em um objeto geralmente não trivial, imperceptivelmente perde esse objeto de vista numa vastidão de deduções e sugestões dele oriundas, até que, na conclusão de um devaneio muitas vezes repleto de riqueza, ele percebe o incitamentum, ou causa primeira de suas reflexões, inteiramente desvanecido e esquecido. No meu caso o objetivo primário era invariavelmente trivial, embora assumindo, por intermédio de minha visão perturbada, uma importância distorcida e irreal (POE, 2012, p. 194). 

A conexão sinistra entre o distúrbio do personagem principal e a doença da sua amada, Berenice, passa finalmente a ocorrer quando ele diz que 

[à] luz cinzenta do início da manhã – em meio à treliça de sombras da floresta ao meio-dia – e no silêncio de minha biblioteca à noite, ela flutuara diante de meus olhos, e eu a vira – não como a Berenice que vivia e respirava, mas como a Berenice de um sonho – não como um ser da terra, terreno, mas como a abstração de um tal ser – não como uma criatura a ser admirada, mas analisada – não como um objeto de amor, mas como o tema da mais abstrusa conquanto desconexa especulação (POE, 2012, p. 196). 

São notáveis as antíteses, mais uma vez, para desenhar a fantasmagoria da figura de Berenice, ainda longe, diga-se de passagem, dos seus mergulhos tenebrosos mais profundos. O jogo de oposições é caro ao narrador-personagem nesse caso, e ele abusa dele, como já vimos ao longo deste texto, em diferentes ocasiões, para diferentes propostas, seja para filosofar, para apresentar, ou para amedrontar. Um pouco mais à frente, depois de tentar buscar explicações racionais para o fenômeno com o qual se deparou, Egeu descreve com mais detalhes o seu vislumbre: “Sua fronte estava alta, e muito pálida, e singularmente plácida; e os cabelos outrora negros como azeviche caíam parcialmente sobre a testa” (POE, 2012, p. 196). Logo depois: 

Os olhos estavam sem vida, e sem brilho, e como que sem pupilas, e me encolhi involuntariamente ante aquele olhar vidrado e contemplei os lábios finos e enrugados. Eles se entreabriram; e num sorriso de peculiar expressão os dentes da transformada Berenice revelaram-se vagarosamente à minha visão. Quisera Deus que jamais os houvesse contemplado ou que, uma vez o tendo feito, houvera eu morrido! (POE, 2012, p. 197). 

A relação entre os dois principais conflitos do conto passa a ser amarrada de uma maneira tão apertada a ponto de, a cada parágrafo, o leitor ficar cada vez mais sufocado. Em outra cena ligada à visão horrenda do narrador-personagem, sobre o “espectro branco e fantasmagórico dos seus dentes” (POE, 2012, p. 197), o mesmo diz: 

Os dentes! – os dentes! – estavam aqui, e lá, e por toda parte, e visivelmente brancos, com os lábios pálidos se contraindo em torno, como no próprio momento de seus primeiro e terrível crescimento. Então seguiu-se a plena fúria da monomania, e lutei em vão contra sua estranha e irresistível influência. Dentre os múltiplos objetos do mundo externo eu não tinha pensamentos senão para os dentes (POE, 2012, p. 197). 

Mesmo com o passar dos dias e das noites, “continuou a fantasmagoria daqueles dentes mantendo sua terrível ascendência sobre mim” (POE, 2012, p. 199), e o ápice do horror se dá na seguinte situação:

Deus do céu! – seria possível? Seria meu cérebro que variava – ou de fato o dedo da morta estremecera sob a alva mortalha que a envolvia? Paralisado de indizível temor vagarosamente ergui os olhos para o semblante do cadáver. Havia uma faixa cingindo os maxilares, mas, não sei como, ela se rompera. Os lábios lívidos entreabriam-se numa espécie de sorriso e, em meio à penumbra circundante, novamente resplandeceram diante de mim, com realidade por demais palpável, os dentes alvos, cintilantes, espectrais de Berenice. Afastei-me convulsivamente do leito e, sem pronunciar palavra, precipitei-me como um maníaco para fora daquele aposento de tríplice horror, mistério e morte (POE, 2012, p. 200).

O contexto, por si só, não é dos mais agradáveis, já que Egeu se encontra próximo do cadáver de Berenice, no mesmo cômodo. O espaço narrativo não é tão detalhado, mas não há necessidade, visto que o medo é cristalizado do modo mais impressionante, desde que o narrador-personagem, independentemente de estar alucinando ou não, vê o dedo da morta estremecendo. Pior do que isso, ele vê os lábios da mesma serem entreabertos “numa espécie de sorriso” – aqui encontramos, especificamente, um terror apoteótico. Se em termos de iniciação “Berenice” é um dos contos mais impressionantes de Poe, devido aos golpes agressivos do seu discurso forte e direto, o que foi há pouco evidenciado é certamente uma das cenas mais tenebrosas das letras do autor estadunidense. 

Parece ficar mais claro, depois das nossas exposições e dos nossos comentários, como as antíteses iniciais, vistas lá na enunciação filosófica do primeiro parágrafo, vão ao encontro da trajetória apresentada por Egeu ao longo da sua narração. Entendemos, por exemplo, que a lembrança de uma felicidade, ligada à Berenice, tornou-se a angústia corrente dele, aquela sua lembrança sombria, ou que foi da beleza, da mesma personagem, que derivou, para ele, um tipo de desencanto. Precisamos ser justos e admitir, contudo, que a nossa leitura de Poe também se dá por meio de oposições, posto que é através da alta beleza estética dos seus textos, inclusive da de “Berenice”, que são originados os voos mais altos do terror.

Referências:

Frankenstein. Dir. James Whale. Estados Unidos: Universal Pictures, 1931.

JAMES, Henry. A Outra Volta do Parafuso. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

POE, Edgar Allan. Berenice. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 191-202.

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