quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Análise | O Poço e o Pêndulo (1842)

O poço e o pêndulo - Harry Clarke


O Poço e o Pêndulo (1842) é uma das narrativas mais geniais de Edgar Allan Poe, mestre dos contos de suspense e de horror, que em mais ou menos quarenta anos de vida (1809-1849) construiu uma bibliografia vasta e recheada de obras-primas. Esse texto do autor estadunidense é cheio de elementos instigantes, com destaque, é claro, para aqueles que provocam uma atmosfera de medo, pautada, sobretudo, pela tentativa de o narrador-personagem entender a sua real condição.

A obra é iniciada com a seguinte afirmação: “Eu estava esgotado - mortalmente esgotado por aquela longa agonia; e quando enfim me desataram, e foi-me dada a permissão de sentar, percebi que os sentidos me faltavam” (POE, 2012, p. 49). A indicação do estado do narrador-personagem é deveras importante, mas, mais do que isso, já no primeiro período do texto, observamos a maneira como ele destaca de imediato os sentidos. Na situação, o protagonista se encontra aprisionado em algum local que não sabemos ainda muito bem; entenderíamos somente mais tarde que ele havia sido capturado pela inquisição, que o levou a essa condição devido ao seu comportamento herege. 

Em um cenário delicado, confuso por não termos noções mais concretas ligadas ao tempo e ao espaço nos primeiros instantes do conto, o personagem principal descreve apenas muito nebulosamente sobre onde está, sobre como está. Ele descreve, aliás, aquilo que consegue, dado que não sabe exatamente o que está sucedendo, somente sabe que está inserido em um local obscurecido, banhado de trevas. Diante do seu desconhecimento e da sua limitação visual, o que causa certa agonia já no início do texto, ele afirma ter visto “juízes em seus mantos negros” (POE, 2012, p. 49) e começa a descartar, após dizer que “todas as sensações [pareciam] tragadas num assalto violento e furioso como da alma de Hades” (POE, 2012, p. 51, grifo meu), algumas hipóteses: “No sono mais profundo – não! No delírio – não! Em um desmaio – não! Na morte – não! até mesmo no túmulo, nem tudo está perdido” (POE, 2012, p. 51). 

A única coisa que o narrador-personagem afirma com certeza é que “dali nenhum conforto adviria”, e que insinuou na sua imaginação “o pensamento do doce descanso que devia ser o túmulo” (POE, 2012, p. 52). A morte como alívio aparece aqui nesse pedaço e apareceria novamente em uma altura mais avançada do texto, o que já diz muito sobre a situação agonizante que o sujeito está vivenciando – é quase sempre assim em Edgar Allan Poe! Alguns borrões, meros alimentos do suspense, pontualmente são indicados pelo protagonista como uma maneira de continuar instigando a atenção do espectador, que tenta em vão decifrar onde aquele indivíduo está inserido, sendo importante lembrar que vamos montando muito vagarosamente o cenário do conto através dos limitados órgãos sensoriais do narrador, órgãos tomados pela náusea, o que deixa tudo ainda mais complicado em termos de precisão de tempo e de espaço narrativos. 

A noção de espaço é aos poucos, somente aos poucos, preenchida quando ele diz: “Essas sombras de memória evocam, vagamente, figuras altas que me ergueram e me carregaram em silêncio, descendo – descendo – descendo mais –, até que uma medonha vertigem me oprimiu ante a mera ideia da natureza interminável da descida” (POE, 2012, p. 52). Ele sente que está descendo, desce tanto que chega a ser oprimido por uma “medonha vertigem”, e depois de descido, dentre algumas das pequenas descrições que compõem vagarosamente o espaço narrativo, podemos destacar quando, através do tato, o narrador-personagem diz que esticou “a mão e ela caiu pesadamente sobre alguma coisa úmida e dura” (POE, 2012, p. 52). Um pouco depois, afirma: “Deixei-me ficar por vários minutos, enquanto me empenhava em imaginar onde e no que podia estar” (POE, 2012, p. 52). Esse empenho, a propósito, sintetiza bem o que é o conto, pois nós, leitores, também nos empenhamos em imaginar onde ele está, a grande meta da narrativa é justamente desvendar a sua localização. 

Os sentidos, por mais que indiquem certos detalhes do local, como a ideia do tato no parágrafo acima, deixam-nos mais confusos em alguns casos, corroboram para a composição do terror e do suspense no interior da narrativa, já que a ausência de clareza agoniza, a exemplo do que vemos neste trecho, bastante relacionado à limitação visual: 

Aterrorizava-me o impacto inicial dos objetos em torno de mim. Não que eu temesse ver coisas horríveis, mas fui invadido por um crescente pavor de não haver nada para ver. Finalmente, com descontrolado desespero no coração, abri rapidamente os olhos. Meus piores pensamentos foram, então, confirmados. O negror da noite eterna me engolfava. Lutei para respirar. A intensidade das trevas parecia me oprimir e sufocar. A atmosfera era intoleravelmente opressiva (POE, 2012, p. 53). 

Enquanto isso, em outras situações, os sentidos continuam revelando muito pouco, o que alimenta o suspense, como apontamos, e também obscurantismo do local. Deduzimos, como deduz o narrador-personagem, que ele está situado em um ambiente subterrâneo, e em certas situações, de modo conciso, o enunciador nos descreve: “Minhas mãos estendidas enfim encontraram alguma obstrução sólida. Era uma parede, em alvenaria de pedra, aparentemente – muito lisa, musgosa e fria” (POE, 2012, p. 54); ou “[o] chão era úmido e escorregadio” (POE, 2012, p. 54). Como já comentamos anteri-ormente, os sentidos montam apenas muito vagamente o cenário, mais confundem do que esclarecem. Até mesmo o olfato é acionado como um importante aliado na tentativa de construção do cenário, mas, como geralmente ocorre, ele é também pouco eficiente, apenas reforça a ideia de que o mesmo se encontra em um ambiente repugnante: “O odor peculiar de fungo decomposição subia às minhas narinas” (POE, 2012, p. 55). 

Para além dos aspectos sensoriais, que são incontáveis dentro desse conto de mais ou menos quinze páginas, o que torna impossível citar todos os casos na nossa breve resenha crítica, devemos destacar os elementos matemáticos, também volumosos no interior da narrativa, elementos sobre os quais o narrador-personagem se apoia para tentar constituir, de alguma maneira, o cenário onde estava inserido, marcado, outrossim, pela presença de um pêndulo ameaçador, de “cerca de trinta centímetros de extensão de um corno a outro; os cornos curvados para o alto, e a parte de baixo evidentemente tão afiada quanto uma navalha de barbeiro” (POE, 2012, p. 59, grifos meus). Nesse trecho, para além do instrumento tenebroso que o tortura, o qual ganharia aos poucos uma força dramática impressionante, as medidas são em diversos casos acionadas pelo narrador como uma forma de iluminar os aspectos mais sinistros do local, a exemplo do que vemos na descrição, desta vez eficiente, do pêndulo afiado, de “trinta centímetros de extensão”. 

Um pouco antes, o narrador-personagem havia dito que o “vaivém do pêndulo aumentara em certa de um metro de extensão. Como consequência natural, sua velocidade era também muito maior” (POE, 2012, p. 58, grifos meus). Como modo de intensificar o horror, os aspectos matemáticos, os cálculos, ajudam-nos a entender melhor onde estamos, com o que estamos lidando, sendo a matemática, é importante lembrar, uma ciência exata, que deveria passar precisão sobre aquilo que mede, que calcula. Quando o narrador-personagem diz que a “oscilação do pêndulo se dava em ângulo reto” (POE, 2012, p. 60, grifos meus), imaginamos melhor aquela situação torturante vivida por ele, com o vaivém do objeto aumentando a sua velocidade e a sua proximidade gradualmente, “cerca de dez metros ou mais” (POE, 2012, p. 60). 

O poço e o pêndulo - Harry Clarke
Quase tudo é calculado e por isso previsto pelo narrador-personagem; ele percebe: “mais dez ou doze oscilações trariam a lâmina a um contato efetivo com meu robe” (POE, 2012, p. 61). A matemática, então, está alinhada ao pavor, e diferentemente dos sentidos confusos, ela é mais transparente, ou melhor, ela é mais segura quando descreve o espaço onde o protagonista está inserido. Falando em pavor, os numerais, tão importantes nesse conto, como já destacamos em alguns instantes, se mostram também a favor da construção de uma enunciação tenebrosa quando, de modo mais minucioso, ressalta os ratos daquele subterrâneo onde o protagonista está enfiado, animais repulsivos que complementam a situação horrenda vivida pelo narrador-personagem, o nosso herói herético. Essas pequenas criaturas, na ocasião, são destacadas em suas centenas: “Vieram correndo do poço em novos bandos. Agarraram-se à madeira – correram sobre ela e pularam às centenas em cima de mim” (POE, 2012, p. 63). Ainda que, nesse caso, estejamos lidando com apenas uma única palavra que parece se encontrar isolada e sem tanta significância, ela é poderosamente dramática naquele contexto. 

Os elementos matemáticos, então, que são o nosso norte mais seguro na construção de um cenário dentro deste conto, ao mesmo tempo em que são um dos fatores que mais esclarecem os perigos nos entornos do herói, atingem o seu ápice quando o protagonista, por causa das impressionantes mudanças geométricas, fica de cara a cara com a morte: 

Agora eu via que dois de seus ângulos de ferro estavam agudos – os outros dois, consequentemente, obtusos. A assustadora diferença aumentava rapidamente com uma reverberação grave, um som de gemido. Em um instante o ambiente alterara seu formato para o de um losango. Mas a mudança não parou por aí – eu não esperava nem tampouco desejava que o fizesse. Eu teria sido capa de estreitar as paredes vermelhas junto ao peito como se fossem as vestes da paz eterna. “Morte”, eu disse, “qualquer morte exceto o poço!” Tolo! Como podia eu ignorar que era para dentro do poço que o ferro em brasa visava me impelir? Seria eu capaz de resistir a sua incandescência? ou, mesmo que pudesse, como conseguiria resistir a sua pressão? E então, cada vez mais achatado se tornava o losango, com uma rapidez que não me deixava mais tempo algum para a contemplação. Seu centro e, é claro, sua maior largura, debruçavam-se na beira da bocarra escancarada. Recuei – mas as paredes se fechando me empurravam para a frente, era inútil resistir (POE, 2012, p. 66). 

Nota-se, aqui, o fato de a geometria local mudar bruscamente, primeiramente em relação aos seus ângulos, até que o cômodo onde o herói está situado chega a um formato de losango que o obriga, pouco a pouco, a ir para o centro daquele ambiente, onde se encontra um largo poço. O momento, graças aos períodos curtos, aos questionamentos, às exclamações e, claro, aos relatos e à matemática, é simplesmente desesperador, se configura como o ápice da agonia em meio a um cenário agonizante desde os seus primeiros passos. O Poço e o Pêndulo compõe o seu terror através de uma série de aspectos, mas, como vimos aqui, dois deles se destacam, os órgãos sensoriais e a matemática, dois artifícios diferenciados na estilística de Edgar Allan Poe, mestre das narrativas de medo que é dono de uma parafernália técnica invejável.

Referências

POE, Edgar Allan. O Poço e o Pêndulo. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 49-66.

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