terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Análise | Planeta Fantástico (1973)

Planeta Fantástico - 1973


Na primeira cena de Planeta Fantástico (1973), filme mais renomado do realizador francês René Laloux, nos deparamos com uma situação sufocante: uma mulher, em close-up, tem as suas expressões de pânico destacadas pela narrativa, e alternando com esse enquadramento, por meio de uma imagem um pouco mais panorâmica, ela é vista correndo desesperadamente, ela tenta fugir com o seu filho de colo do local onde se encontra. Nesse caso, além de correr em um terreno plano, ela tenta, dificultosamente, subir uma elevação, só que, surpreendentemente, é por três vezes impedida por um dedo azul gigante, que depois dessas três tentativas da moça chega a expulsá-la violentamente dali com um peteleco grosseiro.

Estamos, aqui, diante de uma cena semelhante àquela famosa de Sísifo, que empurra a pedra, de maneira dificultosa, para o topo da montanha, mas essa mesma pedra insiste em rolar novamente para a parte de baixo do lugar, obrigando o sujeito a empurrá-la novamente para o topo da colina. No caso do filme, acompanhamos o desenrolar de uma narrativa fantástica, pendida à ficção científica, em que os Oms, os humanos, são seres bem pequenos se comparados aos Draags, as criaturas gigantescas e azuis que habitam aquele espaço narrativo, situado em um planeta estranho. 

No filme, resumidamente falando, os seres humanos, os citados Oms, são mantidos como prisioneiros dos Draags de uma maneira geral, sendo muitas vezes utilizados como meros brinquedos destes, a exemplo do que vemos com Terr (William Coryn/Jean Valmont), que nos conta que, já desde bebê, tornou-se um prisioneiro de um dos gigantes azuis. Terr, seja dito de passagem, é aquele que organiza a narrativa, sabemos disso pela voz over coordenada por ele mesmo em uma fase mais madura da sua vida, e é ele também o pequeno neném que se encontra no colo da mulher que, correndo em pânico, tentando fugir, realizava o movimento semelhante àquele de Sísifo. 

Planeta Fanstástico - René Laloux
À luz desse cenário delicado para os pequenos seres humanos, o longa-metragem se apoia constantemente em dois pilares para desenvolver a narrativa: o primeiro deles está ligado a um discurso mais expositivo, em que aos poucos vamos conhecendo aquele mundo estranho, ao passo que o segundo, por outro lado, se liga justamente ao conflito atrelado às tentativas de libertação dos Oms. O primeiro caso, diga-se de passagem, está mais concentrado na primeira metade da película, uma primeira metade predominantemente mais lenta, enquanto que o segundo caso, mais enérgico, está mais concentrado na segunda metade. 

Nas situações em que a enunciação mais expositiva ganha mais o destaque, notamos que uma voz over pontualíssima coordena as cenas em que vemos os rituais bizarros executados pelos Draags. Podemos citar, como destaque, uma ação em que eles transfiguram totalmente os seus corpos através de uma espécie de meditação. Nessas cenas mais expositivas, mergulhamos profundamente no modo de vida daqueles seres extraterrestres: informam-nos sobre onde vivem, sobre como vivem e sobre o que fazem. Na maior parte das vezes, essas informações são veiculadas nos momentos em que os gigantes azuis estão estudando, quando põem um “arco de conhecimento” na cabeça. É através desse objeto que eles absorvem os conteúdos a serem estudados. O narrador, nesses instantes de obtenção de conhecimento por parte daquelas criaturas, os focaliza, o que consequentemente expõe uma série de informações para nós, espectadores.

Conforme observamos as ações dos seres humanos, que tentam fugir das garras dos gigantes e que tentam sobreviver, em esconderijos parecidos com formigueiros, de ataques de predadores enormes, como uma espécie de ave macabra que possui uma língua de tamanduá e que tem como presa justamente aquelas pequenas pessoas, notamos como o ritmo do filme é transformado: diferentemente daquele mais expositivo, mais tomado pela lentidão, tais instantes em que os Oms ganham os holofotes são bem mais agitados. É justamente com essa focalização sobre aquelas pequenas pessoas, aliás, que entendemos, outrossim, como os embates destas contra os poderosos Draags parecem formar uma possível leitura de que os humanos são como os insetos. 

Citamos anteriormente o fato de os pequenos humanos viverem em esconderijos que, visualmente, nos lembram dos formigueiros, ou o fato de os mesmos serem presas de criaturas predadoras que possuem recursos semelhantes a animais que, nosso mundo, se alimentam de formigas e/ou de outros pequenos insetos, como os tamanduás. Os seres gigantes, além disso, pisoteiam os pequenos seres como se estes fossem mesmo insetos, sendo que muitas daquelas pessoas em desespero naquele planeta selvagem também são mortas por práticas realizadas pelos Draags parecidíssimas com os inseticidas. Diante de ângulos mais abertos selecionados pelo narrador, vemos Oms morrerem aos montes, como se fossem pequenas formigas em pânico, conforme as práticas violentas dos gigantes são executadas. 

Planeta Fantástico - René Laloux
A grande diferença entre os humanos e os insetos em geral, no entanto, se dá com o fato de que aqueles, os Oms, são impressionantemente destrutivos, eles possuem uma engenhosidade deveras enorme para isso. Há uma parte do filme que Terr, aquele que nos narra aqueles episódios conflituosos, consegue roubar um arco do conhecimento, que era do seu dono, e o leva até a aldeia clandestina formada por humanos rebeldes que tentam se libertar do domínio inimigo. Eles adquirem, por conseguinte, muito conhecimento com o passar do tempo, seja em relação à paisagem local, em relação às práticas dos Draags ou mesmo sobre outros assuntos ligados àquele planeta selvagem. É através da obtenção dessa penca de conhecimento que os Oms passam a criar uma possibilidade de combater os seus fortes inimigos. Primeiramente eles testam o conhecimento contra criaturas mais animalescas, contra aquele citado morcego com língua de tamanduá, que é visceralmente destruído pelos Oms. Gradualmente, então, os seres humanos, mesmo em clara desvantagem física, se lançam contra os Draags, que se veem ameaçados pelas pequenas criaturas, aparentemente inofensivas durante a primeira metade da obra.

Uma verdadeira guerra é desencadeada finalmente no clímax, com os seres humanos unidos, e muito hábeis, realizando uma série de manobras por meio de diversos recursos e por meio de ferramentas criadas justamente com a obtenção do conhecimento. Muitos dos seres humanos morrem na batalha, é verdade, e a narrativa utiliza constantemente o plano mais panorâmico para captar essas mortes, algumas delas brutais, mas eles matam também, reagem contra aqueles seres imensamente maiores, uma prova de que a nossa espécie é talentosíssima quando se fala em destruição, quando é preciso usar o conhecimento para destruir, moral implícita que se liga ao que vimos e que vemos acontecer ao longo da História.

Referências:

Planeta Fantástico. Dir. René Laloux. França: Argos Films et al., 1973.

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